Havia uma casa amarela, com portadas e janelas verdes, não muito longe da pequena vila, mas suficientemente longe para ouvirmos o vento circunscrito às copas das árvores, o silêncio interrompido pelo canto dos pássaros, o vaivém esguio de sardaniscas nas diferentes reentrâncias do muro tosco de pedra. Havia também um portão verde, construído de ripas de madeira, onde faltavam alguns pedaços, apodrecidos pela humidade do lugar, junto à casa amarela, onde gravaram, com umas letras amadoras, acima da caixa de correio, O laranjal, nome identificativo de um pequeno pomar de laranjeiras, num dos terrenos do recinto murado, na clareira mais soalheira. O cheiro de um doce ácido intenso penetrava nas narinas dos que ali entravam, curiosos com as brilhantes esferas alaranjadas e as acetinadas folhas, apercebendo-se, depois, da existência de mais olfatos, em virtude de um amontoado fétido de estrume, com os dejetos das galinhas, as flores secas e as frutas estragadas, carcomidas pelo tempo ou pelas aves salteadoras, que bebiam, nem sempre amedrontadas por causa dos espantalhos, do recipiente de metal, abandonado pelo óleo. Nos lavrados campos, víamos uma banheira, fresca de alfaces, provavelmente mandada retirar pela dona da casa, a Fernanda, pois o pouco acentuado degrau do polibã reduzia, e muito, as dificuldades de movimentação e de locomoção. A idade avançada já não ajudava a agricultura, contando com um jornaleiro, que fresava a terra e, com a sachola, construía carreiros mais elevados para não misturar, nem as hortícolas, nem as águas que escorriam. À Nanda, assim familiarmente lhe chamavam, cabia agora apenas as tarefas da manutenção e da rega, bem como os amuos com o Jaquim, julgando-se mais conhecedora dos segredos agrícolas. Há uns meses que a Otília, Tila para os amigos, abandonara o trabalho no restaurante, sem clientes por manter-se fechado, voluntariando-se no lar da vila, para, de seguida, ficar indefinidamente. Os idosos como a Nanda, que iam e vinham a casa, permaneceram, por obrigação, entre quatro paredes e o quintal, impossibilitados de dividirem as poucas conversas que ainda restavam com alguém. A visita cronometrada da Tila era, porém, o único momento do dia que a Nanda mais ansiava, porque arejava-lhe o quarto, fazia-lhe a cama, auxiliava-a no banho e a vestir-se: umas meias grossas por baixo de uns chinelos, uma saia travada e uma jaqueta, de um tecido aos quadrados que sobrara de um pano, comprado na feira, de uma toalha de mesa, bem por cima da blusa. Antes de ir embora, a Tila perguntava-lhe religiosamente: – A Dona Nanda não quer mesmo ficar com nada para o almoço? – Credo, filha! Comida para doentes! Com o meu vagar, faço o meu almocinho… Se fazia para o fraco traste do meu home, que Deus o tenha, também posso fazer para mim. Insistia a Tila, por detrás da máscara, escorrendo suor, dentro do fato protetor, dos imensos afazeres: – Mas não quer mesmo? – Ó filha, viste bem o cebolo da horta e as galinhas como estão gordas? Como dão ovos! Vou lá comer essas comidas compradas no supermercado… Anuía a Tila, bem sabendo que encontraria perdidos, no dia seguinte, dentes de alho e meia cebola descascados, no balcão, macarrão grosso, por cozinhar, no chão de cerâmica da cozinha: – Pronto, pronto… Não insisto. – Traz-me um maço de cigarros, já sabes… Pega lá dinheiro, filha. – retirando do porta-moedas uma nota dobrada em retângulos e entregando-lha. A estranheza do pedido de sempre! Uma mulher simples do campo não devia ter um vício tão pouco natural. – Com essa idade, Dona Nanda, bem que podia deixar… – Não, é precisamente por ter esta idade que não vou deixar de fumar… relaxa-me, sabes… – Bem, a senhora é que sabe! Um dia destes, conta-me quando e por que começou a fazê-lo… Como de costume, a velhinha virou-lhe as costas, contrariada e incomodada, mostrando que não ouvira, propositadamente para não responder. A Tila despediu-se, seguindo viagem na carrinha, para dar apoio a outras pessoas solitárias como ela, com filhos emigrados, alguns apenas em sítios pouco longínquos, mas desencontrados dos corações dos pais. Durante a tarde, a Nanda testemunhou, pormenorizadamente, o crescimento dos outros seres que viviam da terra, resmungando com o Jaquim, cuja ausência inviabilizava o diálogo desconcertado e descortês. Levou os restos do macarrão, desintegrado por ter cozido em demasia, do fogão ao galinheiro e ao pratinho de plástico do gato vadio, mais amestrado pela dependência alimentar. Falou com as orquídeas, presas aos vasos alinhados nas escadas, subindo-as com calma e agarrando-se, a medo, ao corrimão. Ao entrar novamente na casa, entusiasmou-se com as músicas da rádio, rezou um terço e assistiu aos programas da tarde, até que adivinhou, como habitualmente, o preço certo para as coisas. Antes de se deitar, suspendeu os afazeres, estática e apática, no sofá com flores verdes, de frente para o retrato do casamento, com as luzes desligadas. Não se permitiria contemplar a própria sombra e os pensamentos a moverem-se, que, só por si, não seriam boas companhias, preferindo a quietude e a estagnação do tempo, recolhidos num só corpo. O laranjal acordou com o sol disfarçado pelas poeiras do sul, pólenes e pedaços de cabelos brancos retirados, pelo vento, aos dentes-de-leão carecas, que planavam ao nível das órbitas dos olhos da Otília, saída da carrinha, qual extraterrestre, carregando dois pesados cestos nas mãos, com tudo o que necessitava para cuidar da Fernanda. Trazia, há bastantes dias, a natureza colada e entranhada nas narinas, curiosamente com cefaleias mais incomodativas do que as provocadas pelos cigarros da idosa. Abriu o portão verde, chovendo do arco desmanchadas glicínias arroxeadas e brancas. Os pés empurraram-nas, desfazendo o perfeito tapete, até às escadas comprometidas pelos fetos, recolhidos nas cornucópias assemelhadas a caracóis e pelas orquídeas, em procissão. No topo, empurrou a porta, entreaberta, e encontrou a velhota sentada no sofá, que, ao aperceber-se da chegada, olhou e sorriu, admitindo, talvez pela primeira vez: – O fraco traste do meu home gastava o dinheiro na bebida e, quando regressava, batia-me. Fumo desde então, para esquecer o quanto não gostava dele. – E não o deixou? – perguntou, estupefacta, a cuidadora. – Podia lá deixar… naquela altura! Tínhamos quatro filhos, todos rapazes. Formei dois, mesmo depois de ter morrido. Eu era fura bugalhos… – A sério? – Sim! Estão todos bem na vida, dois deles a morar no estrangeiro…. Iam para a escola e vinham a pé, que remédio, não havia mimo…. Conseguiram bolsas de estudo por serem alunos muito aplicados. Levantou-se, calçou devagar as pantufas e, dirigindo-se à janela, continuou o monólogo confessional: – O laranjal era dos meus pais. Restaurei a casa a muito custo, escondia o dinheiro bem dobradinho, o estuporado gastava tudo nas lojas… Nem sei por que cismou a minha mãe que eu devia casar com ele. – Realmente…. – Mas quê, naquele tempo… Eu até podia andar mal vestidinha por fora, mas andava sempre muito limpa por dentro! Beijos apaixonados é que nem pensar, muito menos como agora se vê! A juventude… O nariz afilado da mulher madura revelou-se com a luz que, sorrateiramente, rasgou a janela, bem diferente da imagem da fotografia ondulada, tipo passe, que a Otília retirou do cesto que trouxera: – Por falarmos em pessoas mais jovens…. É a dona Nanda? Surpresa, a idosa respondeu prontamente: – Claro que sou, mas com dezassete anos! Quem me dera ter novamente dezassete anos! A Otília mostrou-se bastante satisfeita por a ter obrigado a recuar uns anos na memória menos exercitada pela ausência de convívios: – Não sabe como me deixa feliz por a ver assim… Envergonhada, questionou: – De quem é esta fotografia? – A fotografia…. Conseguirá adivinhar? – Quem sabe… – tímida, não completou a frase. – É do senhor Vicente que está no lar. Ao arrumar-lhe o quarto, encontrei-a. Vê, tem o seu nome atrás. – referiu, virando a imagem para as costas brancas, com caligrafia a lápis. – O Vicente? O Vicente está no lar? – Sim, sempre conhece? – Então não conheço… – corou. – A sério? Não me diga que foi seu namorado! – exclamou, provocadora. – Ó mulher, tu não ouviste? Naquela altura, não podíamos ter namoricos! – referiu, ofendida. – Desculpe, desculpe. Não quis desrespeitá-la. – Não tem mal. Percebo que brincavas comigo… Mas, olha, como está o Vicente José? – Muito mal, quase não ouve, quase não fala. – A velhice é terrível! Era um homem tão bonito, moreno, com uma barba densa e preta. – É…. Está para lá. Um dia, devia visitá-lo, antes que ele morra. Notei-o tão contente quando lhe mostrei a fotografia. Deve gostar muito de si! – Achas? – Que devia visitá-lo ou que gosta muito de si? – As duas… – Sim! Não tenho dúvida! – E deixar-me-ão entrar? – Então não é nossa utente? Tenha calma que eu resolvo. – Rapariga, vê se não me metes em trabalhos… – pretendeu falsamente demovê-la. – Na quarta-feira é o meu dia de folga, venho cá buscá-la a seguir ao almoço e levo-a num instantinho. – Certo. Amanhã combinamos isso melhor. Despacha-te, demoras muito tempo aqui! – Ninguém pode repreender-me por dar-lhe atenção…. Faço só o meu trabalho. Até amanhã! – Adeus, filha! Até amanhã! Deitara-se bastante tarde, recordando Vicente com a idade da fotografia. No gavetão da cómoda procurou-o, escondido atrás de uma madeira solta, tão igual ao dia em que trocaram imagens e palavras envergonhadas, que nunca mais se repetiram, pelos desencontros mais do que naturais dos amores proibitivos. Continuava, como imaginara, terno e sorridente, humilde e especialmente humano. Com flashes incandescentes de luzes viu-o pouco conversador, como sempre fora, na terra batida, junto ao laranjal, que atravessava todos os dias só para a sentir perto. Num sono profundo como a leveza da própria alma, sonhou dormir abraçada ao amante de apenas dezassete anos, depois de entrelaçarem as mãos debaixo dos lençóis brancos, consomando finalmente a união que nunca acontecera. Acordou rejuvenescida, revigorada pelos sentidos, quase perfumada pela promessa do regresso ao passado. Não comera, não bebera, guardava-se ansiosa e encantada pela ausência, transformada na expetativa da presença. – Vamos! – levantou-se do sofá, enérgica, mal a Otília apareceu na soleira da porta de entrada. – Tanta pressa…. Muita calma, Nandinha! – exclamou, dando-lhe um braço para ampará-la. – Quero vir cedo para casa, pensas que vou andar no arejo todo o santo dia? – perguntou, disfarçando a vontade de reencontrá-lo o mais depressa possível. A saída, olhou-se ao espelho do bengaleiro e ajeitou os ganchos grossos e compridos do cabelo. – Está muito bonita… – referiu, percebendo que certamente não controlara o pincel do blush cor-de-rosa intenso, talvez por nunca ter usado antes, pois encontrava-o sempre lacrado. – Só botei Nivea e água de colónia. – mentiu. – Cheira muito bem, sim senhora! Quer que leve esta cestinha com a rodilha? – perguntou, após perceber que colocara à entrada para a curta viagem, que parecera, porém, demasiado longa à idosa impaciente. Saída do carro, à porta do lar, cambaleou, por não conseguir dar passos tão rápidos como os que gostaria. Novamente, ajudou-a a Otília: – Respire, vá… devagarinho! A idosa encheu o peito com o ar das rosas, que davam as boas-vindas às visitas, mas, nem elas podiam, num dia de sol aberto, suavizar a intensidade dos cheiros e a profundidade dos sentimentos aguardados no interior. A espera pelo fim, lenta para os mais jovens, não deixava de ser igualmente penosa, por inevitável. Do corredor de quadros pintados por homens sobre homens que muito fizeram pelos outros, impressionaram-se com tamanha sabedoria, por terem antecipado, conscientemente, a velhice. Dali, abriram a porta de uma sala com poltronas azuis reclináveis, onde almas em degradação assistiam ao programa da televisão com gritos agudos, porém inaudíveis. Reconheceu-o junto à janela, com as gordas azeitonas escuras já desconectadas da vida. Fernanda sentou-se na cadeira ao lado e chamou por Vicente, que não reagiu. Paciente e tímida, deu-lhe a mão, que estremeceu de imediato, como um choque elétrico, levantando-se e abraçando-a. Tocou-lhe depois na face, carinhoso, com as duas mãos que receberam, como uma dádiva, a dela. Descomplicada, esquecendo a presença de todos os outros velhos, beijou-o, como uma jovem enamorada, prometida a felicidade plena. A Tila sorria, estupefacta, pela pureza e encantamento do momento, mostrando-se, depois, preocupada, quando Vicente corou como o sangue que escorria nas entranhas, respirando demasiado ofegante: – Ó Mena, traz depressa um copo de água ao homem! Ainda vai sentir-se mal! – pediu à mulher que espreitava da janela da cozinha. – Vem, meu amor… sossega. – referiu Fernanda, cega de saudade, consolando-o na nuca. Acalmou como os anjos deitados nas nuvens à espera de pequenos nadas. – Ó Mena, já não é preciso… – gritou a Otília à colega, continuando: – O Vicente serenou… – Tila, chega-me a cesta, por favor. Trago-lhe um presente… – informou a visitante, desembrulhando-o como as mantas que abrigam os bebés. – O que é? – perguntou a Otília. Respondeu Vicente, como se nunca tivesse deixado de ouvir ou falar: – São laranjas… Laranjas bem doces.
O Laranjal um texto de Beatriz Meireles.