V

O sol de inverno escutava o penitente pensamento de Eugénia, que aguardava o misterioso homem à porta de casa, para depois afundar-se atrás de uma nuvem repentina. Ouviam-se as vozes de mulheres da terra, sem que, no entanto, percebesse o significado da conversa. O sol e as mulheres, de aventais e molas de roupa presas aos bolsos, encontravam-se com o ambiente fugidio, elementos que deixavam ainda mais expetante Eugénia. Depois um assobio e uma voz masculina eram escutadas, uma cantilena infantil, como a de Álvaro, o irmão, não o passageiro do táxi. Estremeceu, quando a porta vinte e oito abriu e vislumbrou o sorriso de dentes perfeitamente brancos, que lhe disseram, sozinhos:

Mon cherri, Eugénia! Não demorou nada!

– Acha que demorei? – perguntou, aflita, pensando que Álvaro falara-lhe com ironia.

Riu-se e, com os dedos do único braço que dispunha, desenhou as palavras claro que não.

– É mudo, agora? – estranhou.

– Eu? Não. Estava a preencher vazio, enquanto comia vento.

Eugénia, incompreensiva, pediu-lhe que ocupasse o banco traseiro, tendo Álvaro correspondido, porém argumentou:

– O Álvaro não gosta nada que não o entendas, Eugénia! – barafustou, dando murros incessantes na cabeça que ainda existia.

– Pare, não faça isso! Pode acabar por perder o que ainda tem! – exclamou, começando a chorar de seguida.

– Silêncio. Ora ouça… Que bela a música das mulheres, tão feias são!

Eugénia acalmara-se e iniciou a condução, com o passageiro a repetir o tom e as palavras. A inteligência e a memória dele arrepiavam, assim como a estranheza. Depois, percebera que conversava com as partes do corpo, enquanto as tocava, a boca, a barriga, o pénis, que reagiu ao estímulo, erguendo-se muitíssimo. Ultrapassava todas as barreiras sociais, colocando-a numa posição de fragilidade, sem saber como reagir. Devia fingir que não via ou enviar, de forma discreta, uma mensagem ao inspetor Alfredo? Petrificada, acelerou ainda mais, não desviando por um segundo a cabeça. Percebera, então, que parara de se tocar e iniciava uma nova conversa com o estômago, o braço, a perna e a parte do cérebro ausentes.

– Quanto dinheiro queres, braço? E tu, perna? O cérebro não necessito… Nunca fui tão interessante como agora sou!

Parecia oferecer-lhes dinheiro para os recuperar, começando depois a tirar dos bolsos muitas notas que queria que fossem notadas por Eugénia.

– Vê, Eugénia? Só tenho de lhes oferecer mais e mais notas! – afirmava, enquanto as retirava e atirava para todos os lugares do táxi. Não contente com a demonstração de poder, abriu o vidro da janela e lançou alguns maços de valores elevados para a estrada em movimento.

De repente, cresceu-lhe o braço que lhe faltava. Riu-se, às gargalhadas, bem sabendo que só precisava de oferecer mais dinheiro. Da mala que trouxera, recolheu um isqueiro dourado e acedeu alguns notas que enrolara para fumar.

– Queres fumá-las comigo, Eugénia? Ou preferirás fumar a mais elevada parte do meu corpo? Também não o sinto, por mais que me toquem as mulheres e eu próprio.

Em sofrimento, Eugénia não respondeu.

– Achas que se lhe pagar muito… ficarei a senti-lo?

Continuou a não responder, receosa que lhe pudesse fazer mal ou obrigá-la a cometer atos que já não sabia ser desejados ou indesejados.

Desta feita, tirou notas da mala e comeu-as, deliciado, lambendo todos os dedos.

Nasceram-lhe o estômago e a perna em falta, mas permanecia um homem monstro, ridiculamente bonito. Então, satisfeito, referiu sem inibições ou os bons modos que lhe conhecera:

– Chegamos a minha casa. Queres experimentar-me? – tocou-se, todo o dinheiro ainda não fizera efeito na plenitude, e continuou: – Será que uma mulher como tu me fará, finalmente, sentir algo? Só me faltam as desinteressantes, tentei tudo!!!

Eugénia não teve coragem para negar. Parou o táxi e seguiu-o, disciplinada e encantada, até que o encontrou na casa do irmão Álvaro. Perguntou-lhe se queria beber chá. As cortinas tremelicavam com o vento, deixando-lhe espaço para passar à varanda enquanto o preparava na chaleira a vapor. De dentro, ouviu:

– Atirou-o da varanda, como eu sempre imaginei! – exclamou o inspetor Alfredo.

– Eu tinha de acabar com aquilo. Mandei-lhe uma mensagem, não foi? Uma confissão? Não aguentava mais… – choramingou e disse: – O Álvaro sempre foi um frio homem da noite…

– Eugénia está presa. Deverá manter-se em silêncio…

Não ouvira mais nada até à prisão, o táxi não percorrera mais nenhuma rua e Álvaro morrera para sempre.

FIM