II
Eugénia perdera-se do caminho certo, atravessando primeiramente um túnel que nunca mais findava para depois entrar nos corredores com números e placas com os diferentes serviços do hospital. Sabia o quão errada estava, mas não tinha força anímica para ressuscitar o dom de chegar de forma orientada ao destino. Estar enganada dava-lhe tempo para pensar na hipótese, tão pouco favorável aos afazeres domésticos e da empresa de táxis, de tornar-se cuidadora do irmão em estado vegetativo, bem pior do que o levarem diretamente para o cemitério. Ao vaguear por momentos incontáveis de angústias, a irmã do homem quase morto contrariava a triste realidade com que deparar-se-ia quando finalmente descobriu o quarto – um cérebro cortado a metade, na parte traseira da nuca, de um corpo totalmente engessado. O Álvaro e todos os problemas anteriores desapareceram e talvez desaparecessem os novos, caso morresse, situação plausível perante o estado de saúde então conhecido.
– A senhora é familiar do doente?
– Sou sim, a irmã. Não tem mais família. Divorciou-se, a filha ainda é pequena, mas também não querem saber. – esvaziou o pensamento, ainda em ebulição, com informação em excesso.
– Lamento, mas será preciso um milagre para que sobreviva e, mesmo que isso aconteça, tem danos irreparáveis no cérebro e na coluna.
Atónita, Eugénia não pronunciou quaisquer palavras, continuando o médico:
– Desculpe, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. – referiu, colocando uma mão que confortava o ombro desassossegado.
– Eu entendo… – balbuciou.
O médico, dirigindo-se à saída, acrescentou:
– Está ali um inspetor para falar consigo.
– Um inspetor? Para quê? – questionou, duvidosa.
– Não sei, tem uma perguntas para lhe fazer sobre o seu irmão.
– Ah sim, eu já lá vou. Deixe-me descansar um pouco. – referiu, pegando na cadeira de napa lavável, sentando-se.
Respirou fundo, evitando a múmia, deitada na cama articulada, olhando para os objetos dependurados na parede branca e a janela com a paisagem totalmente negra. Levantou-se, de seguida, encostando a porta devagar, bem sabendo, porém, que não seria ouvida.
– Desculpe, gostaria de falar com a senhora – com um gesto discreto, mas rápido, retirou do bolso o crachá que o identificava.
– Sim, eu sei. O doutor falou-me. E… o que deseja?
– Pretendo que me responda a umas perguntinhas, coisas simples…. Acha possível que o seu irmão tentasse o suicídio?
– Não sei, senhor inspetor Alfredo… Mas sim, muito possível, andava deprimido há muito tempo. – tratou-o pelo nome correto, por recordar-se da gravação, anteriormente mostrada pelo próprio.
– E era a senhora que o visitava?
– Que remédio! Tem a casa uma vergonha, se não sou eu…
– Foi visitá-lo hoje?
– Hoje, exatamente como nos outros dias. Saiu a meio da tarde e não o vi mais… até agora. – mentiu que discutira com o irmão.
– Ah sim? Olhe e homem para beber, era?
– Não muito, mas porquê?
– Tinha uma taxa de álcool muito elevada no sangue e encontramos duas garrafas vazias.
– Não me diga…. Deprimido como andava… – abanou a cabeça, pesarosa, continuando: – Atirou-se da varanda, não é assim?
– Não é certo que tenha sido suicídio. – acrescentou o inspetor Alfredo.
– Não é? – perguntou, assustada.
– As lesões não são compatíveis…. Parece ter sido empurrado… da varanda, precisamente! – exclamou.
– Então foi mesmo da varanda que caiu?
– Certíssimo. Como sabe que caiu da varanda? – questionou, duvidoso.
– Como sei? Ora… não sei… – fez uma pausa para pensar e acrescentou: – foi o médico que referiu, salvo erro ao telefone.
– Pois claro, evidente! – concordou o inspetor.
O olhar de Eugénia libertou-se de preocupação, referindo:
– Bem, tem mais perguntas para mim?
– S´ dona… – lembrara-se, entretanto, que não lhe perguntara o nome.
– Eugénia! – completou a frase.
– Bem… Para já não desejo mais nada. Obrigado.
– Bem, eu estou ao dispor para o que necessitar. Não moro muito longe do hospital e ando num dos meus carros da praça.
– Ah sim? Muito bem. Talvez não precise de falar novamente consigo. A senhora foi bastante esclarecedora, mas nunca se sabe!
– Nunca se sabe! Nunca se sabe! – esganiçou a voz quando repetiu a frase, virando-lhe as costas e dirigindo-se novamente ao quarto do irmão.
CONTINUA