I
A chuva e o frio silenciavam os pensamentos da noite do homem a quem um dia chamaram Álvaro. Os anos passaram e o homem, quase nunca o mesmo Álvaro, passou também pela indiferença dos dias vetustos, primeiro ansioso, depois melancólico, emocionado pela depressão inadvertida que o contagiava para um lugar onde nada existia. Nada existia para o Álvaro, nem entusiasmo, nem alegria, nem paixão, nem desejo, nada se tornou com quarenta anos, depois de um casamento e negócios falhados. Nada, nem ninguém, conseguia retirá-lo do leito, habitat tão pouco natural para um homem, por muito miserável que se tenha tornado. Ali comia, quando comia, ali dormia, noite atrás de noite, sem manhãs e dias nenhuns, muito menos os vencidos, claramente em maior número para a maioria dos homens. Ali, nos lençóis do amor longínquo, reinavam os cheiros flatulentos, pêlos manifestamente indecentes e sujos, suores e desencantos vários, sem sonhos, sem pesadelos. Até o insignificante sexo consigo próprio já nada aliviava ou contrariava, mantendo-o ainda mais frouxo e falhado, um ser abaixo do obsceno.
Na falta da mãe e do pai, já falecidos, da mulher e da filha, de quem perdera a custódia, indefeso, apelidado de louco e sem proteção, apenas garantida pelo pagamento a um advogado que não podia comprar, assumiu a irmã Eugénia a tarefa de o acompanhar na ausência dos dias, empenhando-se para que não lhe faltasse pelo menos uma refeição, limpando também o esterco da bancada da cozinha, um panorama desorganizado de pratos empilhados, repletos de bolor e comida ressequida.
– Álvaro, queres sair de casa para veres a luz? – perguntou, misericordiosa, imaginando que não conseguiria fazê-lo mudar de ideias.
Retirando dos lençóis a cabeça monstruosamente desalinhada de cabelos, respondeu:
– Ainda não é dia, pois não?
A irmã, bem sabendo que não adiantava contrariá-lo, continuou um diálogo, igualmente pouco vencedor:
– É, é dia… Tu não queres ver que é. Preferes ficar aí, nesse escuro da noite. Já pensaste no que te propus?
– Maninha, não me lembro…. Sabes que ando tão esgotado… – tapando-se, por completo.
– Não precisas fazer nada. Eu trato de tudo. Arranjei-te um médico.
– Um médico para quê? Eu não estou doente, apenas cansado, já te disse! – exclamou, mais zangado, fazendo mover o volume dentro dos cobertores para o outro lado.
Eugénia choramingou e ripostou, inspirando o ar sombrio do quarto:
– Se a tua cabeça andasse partida, como um braço ou uma perna, já aceitavas?
– Deixa-te disso e desaparece! – exclamou, o irmão, ingrato.
– Eu vou… E talvez nem volte… isso é lá forma de me tratares, a única pessoa que te estende a mão.
Mentiu, não era capaz de abandonar o irmão, mas a paciência, aos poucos, perdia-se, bem como o amor fraterno, pouco correspondido pela mente doente.
– Tu não ouves? Para quê sair se choveu toda a noite e continua. – tentou manipular Eugénia, bem mais calmo.
– Usa um guarda-chuva, ora essa! Ao menos respiras um ar mais limpo. Há quanto tempo não tomas banho?
– Tomei ontem… – fintou a verdade.
– Tomaste ontem? – duvidou, continuando: – A sério… não queres que te leve a um barbeiro? Tenho lá fora o táxe!
– Não, maninha. Que eu saiba tenho pernas…
– Está bem, mas não tens carro… – esgotada, lembrara-se que fora recentemente penhorado.
– Sua idiota!!! Não tenho carro, não tenho guarda-chuva, mas não preciso disso para nada!!! – afirmou, irado e descompensado, saindo da cama e, vestindo peças de roupa que estavam numa cadeira, por lavar, saiu do quarto.
Abismada, Eugénia sentou-se no fundo da cama, ouvindo bater a porta com um estrondo. Esperançosa, pensou no irmão de barba e cabelo cortados. Aproveitou a ausência para apanhar umas peúgas e umas cuecas, amontoadas como lixo completamente inutilizado junto à mesinha de cabeceira, desenvolvendo outras atividades domésticas tão prementes, lentamente, com as pernas afastadas das cochas. Algum tempo decorrido, apreendeu que o irmão regressara, com um guarda-chuva novo e vinho verde, que baloiçava dentro de garrafas de vidro, quase vazias.
Perguntou, indignada:
– Agora estiveste a beber? Também só te faltava virares um bêbado, como um miserável!
– Calou! Desaparece! – as veias tornaram-se salientes nos punhos e os olhos encheram-se de raiva acumulada.
– Desaparece tu! – respondeu, igualmente furiosa e violenta.
*
Tocou o telefone como um grito continuamente aflito que chama e ninguém aparece. Eugénia dormia com os rolos no cabelo e a touca plástica, ao lado do marido, igualmente gordo das carícias culinárias da mulher. O desejo pela comida unia-os até à eternidade, as dezenas de apetrechos na cozinha, que adquiriam a cada mês, apenas serviam de desculpa para a invenção de novos pratos e sobremesas repletas de azia, refluxos e indisposições digestivas. A empresa de táxis crescera, assim como os desejos da mesa e as necessidades da habitação de gosto duvidoso e antiquado. Eugénia retirou os pés da cama, puxados por uma espécie de guindaste. Saiu do quarto, andando em passo rápido, desengonçado, até ao corredor e à mesinha de entrada, com o naperon e a jarra com flores artificiais, levantando o auscultador com os fios encaracolados.
– Está sim… – perguntou, com uma voz nasalada e empertigada.
– Falo com Eugénia Lopes? – questionou apenas a voz do outro lado da linha.
– Sim, fala sim. O que deseja?
– Lamento informá-la de que o seu irmão Álvaro caiu. Sofreu ferimentos muito graves.
A resposta tardou a aparecer, mas a voz da irmã Eugénia ganhou coragem para perguntar:
– Posso vê-lo?
– Pode, mas o prognóstico é muito reservado. Encontra-se em coma.
– Obrigada por ter ligado… – murmurou, engolindo a noite de medo.
Regressada ao quarto, abanou o corpo macilento do marido, que dormia de boca aberta e inspirava e expirava os odores internos e externos ao organismo.
Sonolento e contrariado, rosnou como um cão velho, que outrora aconchegara-se na manta esfiapada pelos dentes:
– Raios, mulher. Deixa-me dormir.
Os anos desinteressantes e desinteressados de casamento comprometiam o nível de tolerância mútua.
– Homem de Deus, preciso de ti… o que é que achas? – resmungou, de forma irónica.
– Precisas de mim, precisas de mim… Para quê? Ora diz lá…
Levantou-se, de rompante, trazendo por mais de um metro a cama consigo. Numa outra altura, Eugénia correria atrás para ajeitar os lençóis brilhantes e a coberta com folhos.
– O Álvaro está no hospital. – informou, lacónica.
– No hospital? Esse teu irmão passa a vida a meter-se em problemas…. Lá vai ela, a meio da noite, acudi-lo.
– Não brinques, Armando. A coisa é bem mais séria desta vez, ao que parece… Caiu da varanda e está em coma.
– Caiu, como? Atirou-se? Ele não andava meio deprimido?
– Não sei bem. Sim, andava e muito. E também deve ter bebido uns copos valentes… Eu tentei tirar-lhe a garrafa de vinho, mas virou-se contra mim… violento!
– A sério? E depois?
– Depois? Como assim?
– Vieste embora?
– Vim, pois claro. Virou-se contra mim, já te disse! – exclamou, já vestida, colocando depois as mãos nas ancas, impaciente, a aguardar que o marido fizesse o mesmo.
– Vai tirando um dos táxis, mor. – pediu, mais carinhoso para acalmá-la, enquanto apertava o coração tatuado e abotoava a camisa aos quadrados rosa e verde, cuja pele permaneceu à vista do estômago arredondado e peludo.
Os dois dentro do vinte e oito seguiram até ao hospital onde os esperava um homem monstro, que durante iguais vinte e oito dias viveu agarrado a fios e máquinas em descontrolo, jamais pensativo, sentimental ou opinativo. Estanque e dependente tornar-se-ia, se vivesse, não temendo adormecer quando a noite assombra.
CONTINUA