Irene Fonseca e o neto, Carlos Fonseca Campos, receberam, por telepatia eletrónica, a informação de que podiam dirigir-se ao Arquivo de abril de 2074 para a visita organizada e especial que tanto desejavam. Deviam esperar à hora marcada no interior do edifício por Francisco e Manuel, junto ao restaurante, do lado esquerdo da receção. As bebidas e os snacks eram servidos por braços de robots sem cabeça, presos ao balcão onde alojaram o software, que procuravam nas prateleiras, sem nenhuma dificuldade, os rótulos corretos e os códigos de barras para que a entrega, o processamento da conta e o pagamento automático fossem muito eficientes. Piscavam luzes nos ecrãs com as ofertas e os descontos praticados, assim como notícias do dia, ouviam-se canções e poemas de abril nos auscultadores, em várias línguas, que as pessoas colocavam quando se sentavam nas mesas para apreciarem o que adquiriram. Após a refeição, clicavam em botões alojados nos tampos das mesas, deitando para os respetivos orifícios, que se abriam, os desperdícios, transformados em gases seguiam depois pelas condutas até ao destino final de transformação.

Após a refeição, Irene e Carlos apreciavam posters de intervenção e jornais da época, afixados para decorarem as paredes do restaurante, até que apareceu Manuel, avisando-os:

– Vim ao restaurante há pouco e não vos vi… Que tontaria!

– Estávamos à hora combinada…. Podia ter ligado ou transmitido essa ideia…

Irene olhou discretamente para o relógio de pulso. Era dada à pontualidade e não aceitava de bom grado os atrasos dos outros.

– Sim, sim…. Peço imensa desculpa. Entretanto, o Francisco seguiu com o resto do grupo, estão um pouco mais à frente.

– Sem problema. – referiu, descomplicando racionalmente a situação.

Carlos exclamou:

– Então vamos lá!

– Que ansiedade e energia…

– Não fala de outra coisa desde que saiu daqui no outro dia, mas é melhor que a guarde para a visita… – mencionou a avó, conscienciosa.

– É melhor, pois é…. Há quilómetros labirínticos de estantes com os livros e os documentos depositados. Têm necessariamente de me seguir, eu precisei de meses para orientar-me…

– Não se cansa? – questionou Carlos, preocupado.

– Canso-me, pois…. Vamos requisitar as trotinetes elétricas. Mas antes, deixem nos cacifos as vossas mochilas, são proibidas como sabem.

– Claro, compreendemos.

Manuel, Irene e Carlos levantaram os respetivos objetos que viabilizariam, sem dificuldade, a deslocação no interior do depósito do Arquivo de 2074 e entraram no enorme elevador que os transportaria do presente para o passado, um mundo totalmente desconhecido, pelo menos para o mais jovem dos visitantes.

*

A porta automática do elevador abriu-se e uma voz feminina declarou pronunciadamente aos utilizadores que estavam no piso menos um de um total de cinco pisos subterrâneos destinados a guardar tesouros arquivísticos.

Do lado esquerdo, vários robots recebiam a documentação e os livros antigos, resultado das doações particulares ou aquisições do Arquivo, procedendo-se à limpeza e à retirada de agrafos, pioneses ou clipes que agarravam ou danificavam as palavras com relevo histórico. Humanos compenetrados, com competências especializadas, restauravam com minúcia algumas folhas mais danificadas pelo tempo, enviando para destruição das máquinas que comiam papel, o que simplesmente não interessava. Tiras de papel surgiam, seguindo através de um tapete rolante até a uma conduta que as transformava em energia, ajudando a reabastecer, tal como acontecia com os desperdícios da cozinha e do restaurante, os consumos do edifício.

Do lado direito, o amarelo das paredes predominava, estantes de cor branca percorriam as inúmeras salas, sem que se pudesse ver o fim. Nas diferentes prateleiras, dispunham-se capas pretas, largas, com alarmes contra furtos e etiquetas inteligentes que classificavam e descreviam o conteúdo, associado às digitalizações e disponível igualmente no sistema integrado de informação.

Como Francisco e Manuel explicaram anteriormente, nos tetos estavam colocados dispositivos especiais que controlavam a temperatura e a pureza do ar, prejudiciais à preservação dos documentos caso não estivessem de acordo com as normas estabelecidas.

Carlos elevava a cabeça para não perder nenhum pormenor, o que à partida parecera desinteressante começava a ser diferente de tudo o que vira antes:

– Avó, era esta a tua memória de um Arquivo? – perguntou, visivelmente animado, rodando o guiador da trotinete para que pudesse estar ao seu lado.

– Sim, meu querido. Era quase assim no meu tempo… – riu-se, acrescentando: – com muitos menos robots, menos meios… Os orçamentos para arquivos nem vê-los… Nem sei como o Manuel se interessou…

– A nossa madrinha adorava cultura. Era uma sonhadora!

– É bem verdade… A cultura é para sonhadores e lutadores, não há dúvida.

– Se conseguirmos arrastar connosco mais uns quantos… Um por um, sem desistir!

– Talvez os meus amigos tenham interesse… – referiu Carlos, duvidando logo em seguida: – talvez não, preferem construir casas virtuais, com móveis virtuais e carros virtuais…

– Vivendo vidas virtuais, com conversas virtuais… Eu digo-te que não deves exagerar, o equilíbrio é fundamental!

– Claro, avó! Eu sei isso muito bem…

– Eu sabia tudo com a tua idade também…. Só mais tarde comecei a lembrar-me dos meus avós, dos meus pais, dos meus professores…

Manuel pediu-lhes que parassem as trotinetes, pois iriam tocar os documentos com luvas, que previamente oferecera. Abriu, em seguida, uma das capas e mostrou-lhes o relatório:

Quando os lobos uivam… leiam com atenção o que diz este relatório do livro de Aquilino Ribeiro…

O autor intitula este livro de romance, mas com mais propriedade deveria chamar-lhe um romance panfletário, porque todo ele foi arquitetado para fazer um odioso ataque à atual situação política…

– Manuel!!!

A voz aflita de Francisco preenchia os interstícios vazios entre as capas negras das prateleiras. Manuel guardou o documento que mostrava aos visitantes, fechando-o em segurança.

Carlos interveio:

– Parece o seu primo Francisco.

– E é… O que se passará?

– Não sei, pareceu-me que vinha dali… – Manuel fingia não ter preocupação.

– Certo… O som vem mesmo dali! Vamos!

Apressaram a velocidade da trotinete, até que chegaram ao encontro de Francisco, que procurava desesperado Manuel.

– Desapareceram documentos… documentos muito importantes… Livros…

– O quê? Tens a certeza? Não estão em cima? Não terão sido pedidos para consulta?

– Não foram, não. Tenho a certeza, infelizmente… Não tens ideia, há capas e capas vazias. Da comemoração oficial dos cinquenta anos despareceu quase tudo. Livros de poesia, contos, textos, editados no ano de 2024.

– Em que corredor?

– Corredor número quarenta e um. Abri as capas para mostrar e nada dentro. Mas o alarme nem sequer tocou, nem hoje, nem em dia nenhum.

– Pois não… nem hoje, nem em dia nenhum…. Foste ver as digitalizações dos originais?

– Ainda não, encaminhei as pessoas ao andar de cima. Achei melhor, não as queria deixar sozinhas.

– Fizeste bem…. Deixa ver….  – procurou na app por respostas em falta.

Empalideceu.

– O que se passa?

– Ora vê… – apontando com as mãos trémulas: – Também não existe nada.

*

Irene e Carlos recusaram-se a abandonar o Arquivo, juntamente com as pessoas do primeiro grupo. Usaram de fortes argumentos para convencerem Francisco e Manuel a ficarem, com o intuito de os ajudar. Juntos, talvez descobrissem o malfeitor que furtara os documentos, quer físicos, quer digitalizados, pirateando o sistema informático. Começaram por inspecionar o depósito, debaixo dos armários de todas as prateleiras, por ordem numérica, e nos recantos mais suspeitos. Francisco acompanhava Irene, Manuel fazia par com Carlos. Após horas de procura, sem resultados, encontraram-se na sala de reuniões do edifício para delinearem uma nova estratégia.

– Então, apareceu alguma coisa?

– Nada de nada, vimos todos os lugares recônditos do depósito… – tristemente Irene informou, perguntando: – Carlos, não estás cansado?

– Um pouco, avó. Mas não devemos desistir, não é o que dizes? – sorriu, contrariando a fome e a falta de energia.

– Digo, pois! É muito importante lutarmos pelos nossos objetivos.

– Manuel, há novidades dos peritos em informática que o Gabinete Ministerial chamou?

– Que eu saiba, ainda não… Não conseguiram chegar ao computador que acedeu aos ficheiros. Parece que é isso…

– A sério? Nem com recurso à inteligência artificial?

– Não se do lado de lá existe uma inteligência artificial superior…. É uma guerra informática de diferentes inteligências.

– Começavam a falar disto quando nascemos, após tantos anos é um descontrolo absoluto…

– Nem sempre o Homem utiliza as suas descobertas para o bem… Por muito que se inove, é sempre o mesmo.

–  Verdade… Nem estava nos nossos planos perdermos a História depois de a preservarmos…. Lutámos tanto para que isto fosse uma realidade…

– Calma, não deixem que a desesperança os contagie! A memória dos nossos antepassados assim justifica e o futuro das próximas gerações.

Irene olhou carinhosamente para Carlos, que insistiu:

– Talvez os informáticos nos possam dizer algo de novo, não trouxe os seus óculos telepáticos?

– Não trouxemos nada e desligamos tudo, não queremos que ninguém nos ouça ou saiba ler os nossos pensamentos à distância.

– Sim, a missão é sigilosa, como sabem assinaram um compromisso com o Arquivo…  Andem daí…

Seguiram Francisco até à entrada de uma sala, onde, no vidro voltado para o corredor, piscavam os servidores e os computadores.

– Aguardem, por favor, neste sofá.

Cumpriram a ordem de Francisco, sentaram-se Irene e Carlos, Manuel andava impacientemente de um lado para o outro.

Os minutos passaram como se fossem horas, até que o minuto certo trouxe boas notícias.

– Não vão acreditar que chegamos, finalmente, ao culpado.

– Quem é? – perguntaram em uníssono.

– Conhecem?

Mostrou-lhes a fotografia do homem que os acompanhara no dia da inauguração.

– A sério? Esse senhor parecia ser contra a inteligência artificial… – lembrou Irene.

– Como pode fazer um ataque informático ao Arquivo, interferir no sistema de alarme e furtar documentos originais?

– Ao que parece o filho ficou com uma deficiência grave após uma operação feita por robots. Tem um transtorno psiquiátrico, Manuel.

– Ainda assim, para quê tentar destruir as memórias de um Arquivo? Para provar o quê, que não há ninguém tão inteligente como o Homem?

– Os poderes fascistas e populistas gostam de mentir acerca de tudo, da História…. Controlá-la.

– O que dizes? Não percebo nada…

– O coitado era instrumentalizado, usado para entrar aqui e no nosso sistema informático. Enganaram-no, sugeriram-lhe que podiam reverter a situação do filho caso fosse bem-sucedido na missão…

– E os originais? Onde estão?

– Seguros, com a polícia. Encontravam-se na casa do homem. Ao acederem, descobriram, para além do endereço informático, o físico.

– O que poderá valer este documento daqui a cinquenta anos? – Carlos interrompeu-os, oferecendo-lhes o papel que escrevera enquanto aguardavam.

 

Francisco leu, feliz pela vitória da História:

Muito entusiasmado,

voltei com a Avó ao Arquivo.

Apagaram a memória,

disseram, 

para mentirem sobre a História!

Mesmo concentrado,

nada encontrei do homem esquivo.

Juntos, inteiros, não desistimos,

até que de novo descobrimos,

em 2074,

abril de 2024 e de 1974!

 

Beatriz Meireles, 25 de abril de 2024

Ao Francisco e ao Manuel,

nos cinquenta anos do 25 de abril de 1974.