Nos 500 anos de Camões…

O poema que resiste ao naufrágio

 

Nos orifícios das nuvens, um homem espreita o poema como um arco-íris, sem entrada e saída para que exista, mas infinitamente luminoso.

O homem era cego de um olho, dando ao outro olho a hercúlea tarefa para ver nos orifícios das nuvens o poema, o lugar onde também estava a espuma da onda.

O vento anunciava a morte do homem, que simulava um sorriso ao lento barco andante.

O céu balançava no espelho da água e o homem aguardava que o poema pudesse quebrá-lo, dilacerá-lo, em alucinantes estilhaços.

Para além do oceano, o homem encontrou as ausências, a errância e a fé no império, a fortuna de quem se tornaria imortal. O poema chegou, apesar da não fortuna.

Finalmente, entrou a tempestade por inteiro, tocando nos cabelos da proa e arrastando o homem e o seu poema, engolindo-os até às profundezas do mar.

Quis adormecer o homem, náufrago cansado de lutar contra a força da maré, porém o poema resistiu ao tempo do naufrágio, o poema simplesmente resistiu ao naufrágio.

 

Beatriz Meireles

Junho de 2024