Um cravo vermelho vivia solitário num jardim onde enterravam as palavras dos livros, os sonhos das mulheres cujos filhos partiam para a guerra, a vida dos que passavam fome.
Uns homens de gabardines negras vinham amiúde ao jardim, igualmente escuro, com o propósito de arrancarem e levarem as flores, as plantas e as árvores que podiam dar-lhe cor. De todas as vezes, o cravo vermelho resistia à tortura e à prisão, dobrando o caule e escondendo as pétalas junto à terra. O cravo vermelho não sorria muito, por não sair do sítio, mas colhia do chão, onde estava enterrado, letras que formavam os vocábulos esperança, liberdade, justiça e democracia, perseverando e não morrendo.
Até que, num dia para sempre não esquecido, chegaram ao jardim outros homens e mulheres pintados de ideais, outrora clandestinos, para regarem as pequenas raízes que brotavam e colecionarem mais palavras para além das que o cravo vermelho guardara em segredo, como a fraternidade e a igualdade, a educação e a cultura, os direitos e os deveres.
Ao aperceberem-se finalmente da existência do cravo, perguntaram-lhe como conseguira manter-se vermelho. Respondeu-lhes, entusiasmado:
– Imaginei-me itinerante, assim como o jardim.
Beatriz Meireles
Nos cinquenta anos do 25 de abril de 1974.