Na larga chaminé de uma casa branca e azul vivia uma cegonha, pura como a neve. Após nove meses em África, migrara para um silencioso monte alentejano, construindo o ninho com o auxílio do bico e do pescoço longos, permanecendo, tão bem acomodada na nova residência, o ano inteiro em Portugal.

Os sobreiros encantavam paralisados a paisagem de terra seca, mesmo no inverno, altura em que, nesta história, se aproximava o dia mais especial do ano: o Natal.

Não lhes parece que o dia mais especial do ano de 2023 merecesse um acontecimento surpreendente e extraordinário? Querem saber o que aconteceu depois da missa do galo? Eu conto-vos, tocando nas palavras como sinos em regozijo!

A cegonha Gaia era uma sonhadora e os sonhadores não se contentam com a quietude por muito tempo.

Colocou, enérgica, um barrete vermelho e branco que encontrara num aterro e uma sacola no dorso, impulsionando depois o voo mais veloz que alguma vez conseguira para uma missão de difícil execução, porém de possível execução, caso chamasse as outras cegonhas. Para as convencer a abandonarem os ninhos, usou de argumentos que convidavam os espíritos à união e à solidariedade.

– Héstia, acorda!

A amiga cegonha despertou do primeiro sono da noite, perguntando atordoada:

– Acordo para quê? O que é que se passa aqui?

– Ora, para quê? Eu explico-te muito sucintamente, não podemos estar para aqui a conversar…

– Não podemos? Já não entendo nada…

– Não, não podemos. Temos de salvar os bebés!

– Os bebés!? Eu não fiquei de trazer nenhum esta noite… Tu ficaste?

– Bebés que irão nascer, não. Apenas os bebés já nascidos.

Os pequenos olhos negros esbugalharam.

– Bebés nascidos? Procedemos à entrega desses bebés aos pais…. Desculpa, mas cumpriu-se a função!

– Temos de ir… A sério! Devemos trazer todos os bebés sem-abrigo, principalmente os que dependem de incubadoras. Estão a desligar-se!

– E o que vamos fazer depois?

– Depois? Reanimá-los, principalmente às almas boas destruídas pela guerra, reprogramar os sonhos, apagar as terríveis memórias…

– Está bem, vamos!

Gaia ofereceu da sacola a Héstia um capacete da paz, ambas abandonando o ninho com uma velocidade estonteante que desprendeu igualmente voadores os galhos e as folhas.

Visitaram, num ápice, a cegonha Irene que se instalara num poste de eletricidade altíssimo, mantendo-se entretida com as luzes bruxuleantes que soltara de uma árvore.

É Natal! É Natal…. – cantarolava, animada.

– Irene, parece-te que brincares com objetos dos humanos torna o teu Natal melhor?

– O quê!? O que querem agora? – mostrou-se incomodada com a observação repentina de Gaia.

– O que queremos? Temos de fazer nascer de novo os bebés que entregámos em alguns territórios onde indignamente desrespeitam seres humanos iguais. Devemos salvá-los de uma chuva de balas negras!

– Parece-me impossível…. Estou aqui tão bem sentada… Também alinhas nesta maluqueira, Héstia?

– Não temos outra saída! A Gaia tem razão. Se não os reanimarmos, reproduzirão a violência, não cuidarão dos pais e dos avós que sobreviverem, farão mais vezes o mal do que o bem.

– Mas isso acontece mesmo sem guerras…. Há tantos filhos a abandonaram os pais mais velhos!

– Evidente… As guerras por que passam também estão dentro de si…. Vens ou não? Não podemos deixar que estes bebés sejam adultos sem apetências para educarem os filhos, deixarem de transmitir a cultura, o património e a história aos que vierem depois.

– Estou a despachar-me… – referiu, abraçando com as asas imensas flores brancas que tirara do contentor de uma florista, abrindo, elegantemente, uma mala para guardá-las.

– Aqui vamos nós! – exclamaram, movidas de entusiamo.

Prosseguiram até ao ninho onde dormia a cegonha Aurora, agarrada a um livro de histórias, tranquilizador por recear a noite solitária.

Irene abanou-a e afastou o cobertor para que sentisse o ar noturno, que a intimasse a acordar. Com delicadeza e serenidade inexplicáveis, questionou:

– A que devo a honra de uma visita tão fora de horas?

Riram-se com a bondade da amiga e disseram em uníssono:

– Viemos convidar-te a voares connosco…

Sabiam que Aurora era tímida e de certo modo receosa do desconhecido. Não podiam informá-la de toda a verdade.

– Mas hoje? Na madrugada deste dia? Podemos esbarrar no trenó do Pai Natal…. É preciso ter muito cuidado!

– Tu e os teus medos…. Voaremos para que os bebés fiquem em segurança, não sofram traumatizados…  – mencionou, docemente, Héstia.

– Sim, vão nascer uns quantos e nós não somos suficientes… Precisamos da tua preciosa ajuda! – referiu, de forma ardilosa, Irene.

– Bem, sendo assim não tenho outro remédio…. Acompanho-vos! Deixem-me colocar uns óculos de sol para não encarar a escuridão de frente.

– E o barrete, pega lá! Para que o Pai Natal entenda que fazemos parte do seu exército de amor e desvie o seu original meio de transporte…

Acertaram uma maneira para chamarem mais diligentemente todas as cegonhas do mundo, dando instruções para que se aproveitassem os megafones abandonados nas lixeiras, propagando-se o som desesperado de socorro. Todas se uniram, revelando um iluminismo superior ao dos humanos, sempre tão cientes da hegemonia e opressores dos seres vivos aparentemente inferiores. Dividiram códigos postais e respetivas tarefas, que cumpriram sem atropelos nem ânsia de protagonismo, encontrando, na perfeição, os bebés desprotegidos e em incubadoras desligadas de destruídos hospitais. Embrulharam-nos com panos brancos, cor que simboliza a paz, agarrando com os bicos em duas das pontas para o salvamento aéreo.

No jornal de hoje, dia 26 de dezembro de 2023, que acompanha todos os outros papéis desta secretária, relatam-se apenas alguns ferimentos ligeiros nas asas e nas patas das maravilhosas cegonhas, que cumpriram com distinção a nobre missão. Choveram, em vez de balas negras, tantas flores brancas da mala da cegonha Irene, que imitavam neve, quando não costuma nevar no Alentejo.

É ou não um feito verdadeiramente esplêndido, como prometia no início deste pequenino conto? Perguntam-se ainda, por certo, pelos bebés…

Em paz e livres da guerra, os meninos estão dormindo nas palhinhas dos ninhos.

 

Conto inédito de Beatriz Meireles,  a 26 de dezembro de 2023.