III

Ao trigésimo dia, Eugénia levou Álvaro, com a ajuda de homens sem rostos que se diferenciassem do negro das estacas das vestes, do hospital para o cemitério de prazeres e sensações jamais existentes. Do homem triste na vida, esquecido e insignificante, a homem apenas presente numa outra matéria, de natureza espírita, não contemplada na paisagem terrestre, onde cantam os pássaros e germinam as plantas. Nada era mais para além do que Eugénia, somente Eugénia, sem pássaros e sem plantas, passou a ver, possuída por forças estranhas e ocultas que desconetam o corpo e a mente do ser humano. Do nada, o monstruoso e frio homem da noite, tornou-se outro. Álvaro ressuscitou, saltou do chão, até onde caiu, bêbado como uma garrafa de vinho repleta de vapores de álcool, para a varanda de portas de vidros escancaradas, onde as cortinas tremem dada a aspereza do vento e a indiferença de deixarem de servir a alguém e, aos poucos, deixarem também de ser cortinas para passarem a ser uma coisa amarela e bolorenta e, no fim, apenas nada. Álvaro comeu então o vento, esfomeado como um carnívoro dinossauro, e nasceu, nasceu de novo, sem perna, sem braço, sem parte do cérebro, que se agarrou ao chão de ervas e pedras, tornando-se uma espécie de estrume fertilizante, e sem estômago, sem estômago, note-se, talvez a única razão para conseguir comer o vento todo e impedir que abanassem, quais velhas trémulas de mãos, as malditas cortinas que não impediram a queda absurda, por predestinada à primeira nascença. Depois saiu de casa, apesar de tudo, janotíssimo, como um homem rico e bem-sucedido pelos prazeres e sensações da vida, capaz de ejacular para todos os corpos femininos que logo se deitavam, encantadas por um fascínio inexplicável, desconsiderando cegamente que lhe faltavam a perna, o braço, parte do cérebro e o estômago e que morava numa casa deveras desinteressante. A linguagem rica e o conhecimento disfarçavam a realidade, iludindo-a. Eugénia era a única mulher que reparava nas deficiências do senhor que passara a andar no táxi vinte e oito, todos os dias, pela hora do chá das cinco, sem que, todavia, reconhecesse como o irmão, apesar de o levar à conhecida casa desinteressante, de todas as vezes. Ao irmão faltava-lhe a distinção, falar-lhe com tanta consideração e cordialidade. Jamais Álvaro, que estava morto, totalmente livre da vida miserável, atenderia telefonemas envoltos em mistério e voz serena, apelidando as mulheres que instantânea e hedonisticamente o amavam, com nomes de variadas flores. Uma a uma, tratadas de forma diferente, especiais, por um mestre apreciador de botânica, um gentleman, uma espécie de enciclopédia, feito extraordinário dada a ausência de cérebro, onde pudesse registar tantas informações. Fugiam das conversas, perceções e sentimentos diferentes, quando entoava línguas igualmente diferentes. Italiano e francês, com um arrebatamento e paixão nobres, espanhol, um sexo fugidio, alemão e inglês, razoáveis compreensões recíprocas, e português, um segredo de amor platónico. Ficava depois, no táxi, um silêncio que sossegava Eugénia, que olhava através do espelho o senhor, esquecendo-se da fealdade de ambos e sorrindo à repentina jovialidade, frustrando-se, no entanto, pouco tempo depois, dada a ausência total de beleza e de quaisquer faculdades de atração, bem pelo contrário.

Tentava manter um diálogo com o misterioso homem, sempre que desligava o telemóvel, contendo a boçalidade:

– O ar condicionado está do seu agrado?

Oui, madame.

Tornava a sorrir Eugénia, perguntando:

– E o reflexo do sol, não o incomoda? Quer que tape os vidros ou afaste um pouco o espelho?

– Nada mais me incomoda, madame. Eu não consigo ver-me refletido, não sinto frio, não sinto calor…

– Como assim? – questionou-o como a uma divindade, perplexa.

– Verdade. – riu-se, de forma despreocupada, e continuou: – Morri e renasci… desde então não consigo ver-me a espelho nenhum, não como, apenas vento, mas não perco energia, não sinto nada.

– Não posso acreditar, senhor, falta-lhe parte do cérebro, porém é a pessoa mais lúcida, culta e inteligente com quem já estive…

Álvaro tornou a rir, desta vez às gargalhadas, de forma grotesca.

Eugénia receou, pela primeira vez, a presença e o efeito que aquele homem provocava nela. Seria afinal o irmão? E questionou-o, em catadupa:

– Mas, diga-me, o senhor disse que morreu? Morreu como? Quando morreu? Se morreu, como consegue estar aqui?

– Sabe bem como morri… – esboçou um ligeiro sorriso que mostrou os dentes imaculadamente brancos, continuando: – Isso, no entanto, já não interessa para nada… voltei a nascer, para viver a vida que nunca vivi e para ser quem nunca fui.

Eugénia, apavorada, mostrou-se confusa e disse:

– Percebo que esteja a falar nisso num sentido desfigurado… – referiu, querendo usar palavras que o pobre e deficiente léxico não acompanhavam.

Álvaro olhou com desdém para Eugénia, era realmente uma tonta para um homem habituado a mulheres bem mais apelativas e apetecíveis.

Ainda mais atónita, Eugénia mencionou, não contendo um bocejo, que piorou a deficiente dicção:

–  Anda como se não lhe faltasse a perna, mexe no telemóvel com a pequena parte que restou do braço… Como se nada fosse!

– Verdade, sou um homem com muitas qualidades, agora com ainda mais qualidades…. Tenho uma mestria que não existe… – disse, realmente convencido.

– Chegou! – exclamou descontroladamente alto Eugénia.

– Cheguei… – respondeu, de forma elegante Álvaro, finalizando a frase: – …a tempo para o chá das cinco.

CONTINUA