Francisco e Manuel eram primos, nascidos com apenas poucos dias de diferença, no início do ano de 2024.

Lembrava-se os cinquenta anos de uma Revolução de 1974, as pessoas erguiam nas ruas cravos vermelhos de liberdade, cantando e contando histórias do tempo da ditadura e do dia 25 de abril, apesar de proliferarem em Portugal homens e mulheres que prometiam uma utopia irrealizável, populistas que ganharam o poder do povo, que deixou de conseguir distinguir, por esquecimento da memória, a verdade, nem sempre justa ou acertada, da falsidade.

Nos rostos das ruas de Portugal inteiro, desunido, estava também o medo da incerteza, a amargura provocada pela falência da força de quem governa, a desesperança pelas mortes da guerra e da pandemia, a ausência de empatia, imperando um individualismo e um egocentrismo, que triunfava, se triunfava, perante a derrota do coletivo que só sairia vitorioso se reinventasse o futuro.

Do ano de 2024, Francisco e Manuel não recordavam nada, bebés que cumpriam, através das mães e dos pais, as necessidades básicas para sobreviverem, sem sonharem com as cores de abril, o verde e o vermelho, porém, impregnando na pele o doce perfume de uma cultura democrática, de direitos, de deveres e de humana dignidade.

*

Os ideais sempre os acompanharam no carrossel da existência, filhos de mulheres e de homens que valorizavam a educação e o respeito pelos outros, sem esquecerem a importância da História. Do amor à palavra dita e escrita, herdaram da madrinha de ambos mãos para criarem, preservando-a até à eternidade no Arquivo que ajudaram a inaugurar nos cem anos da longínqua Revolução de 1974. Faziam cinquenta anos de vida.

O Arquivo de abril em 2074 era uma espécie de país renovado, um edifício cuja arquitetura lembrava um jardim-nuvem suspenso entre a terra e o céu. Não havia nenhuma coluna, arame ou fio de aço que sustentassem a estrutura em betão translúcido, apenas múltiplos vazios para serem completados pela memória e pelas ideias de desenvolvimento.

Cravos enormes, verdes e vermelhos, surgiam da relva que circundava a construção, sem necessidade de rega devido a uma tecnologia inovadora implementada no solo, que alimentava os caules, as folhas e as flores. Raramente acontecia morrerem cravos, bem pelo contrário, nasciam cada vez mais, de pétalas gordas e viçosas, vermelhas.

Passeavam no exterior do Arquivo muitas meninas de verde que cheiravam a chuva, sem que estivesse chuva, ainda assim reais, e outros meninos e meninas de verde, não reais, personalidades históricas não vivas na Terra, hologramas inteligentes de luzes que iludiam os visitantes com vozes, conversas, canções ou pensamentos de Zeca Afonso, José Mário Branco, Sophia, Natália Correia, Maria Lamas, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Mário Soares, Álvaro Cunhal, Humberto Delgado, entre outros. O lugar bom da história convivia serenamente com o lugar mau da história, não se apagando igualmente o passado dos homens da PIDE, de Salazar, sentado a uma cadeira de madeira depositada no jardim, ou de Marcelo Caetano.

Os visitantes chegavam ao Arquivo de abril de automóvel voador, clicando em botões que faziam desaparecer os veículos, sem o incómodo estacionamento, para a inauguração tão desejada e participada pelo povo. Sentiam o calor do sol que irradiava da transparência das paredes, para uma maior sustentabilidade ambiental e gestão de energia, acedendo depois ao interior do equipamento cultural.

Francisco aguardava ansiosamente pelos demais, desejando-lhes as boas-vindas, surpreendidos pela enorme adesão:

– Boa tarde! Estão no Arquivo de abril em 2074, mas para quem não sabe a Revolução aconteceu há cem anos, na madrugada de 24 para 25.

Passaram a receção, ficando a sala que se seguiu na escuridão e um som insinuou a marcha de militares, que depois apareceram virtualmente desenhados no teto e nas paredes, entoando a canção Grândola, Vila Morena. Manuel completou a explicação:

– Esta foi uma canção de protesto contra a ditadura do Estado Novo, composta e cantada por Zeca Afonso, escolhida pelo Movimento das Forças Armadas, sinalizando a revolução aos militares.

Uma criança crescida olhava surpreendida para o efeito de luzes, perguntando com muita seriedade:

–  O que era a ditadura do Estado Novo?

Francisco tocou no ombro de Manuel, para que continuasse a explicação:

– Imagina que não podias dizer o que pensavas, não podias viver em liberdade, não podias escrever o que querias… As pessoas naquele tempo estavam sujeitas a serem presas pela PIDE sempre que iam contra as ordens de Salazar.

– A sério? Como foi acontecer uma coisa dessas?

– Nem sempre escolhemos bons governantes e, quando damos por ela, já estamos a ser controlados…

– Como a internet nos controla, não é verdade, assim diz a minha mãe…

– E diz muito bem, a internet controla tudo. Não há nada como estarmos, por vezes, desligados, mais próximos de nós e dos outros, conversarmos sem a barreira dos telemóveis e dos computadores. É importante falarmos nisto, mesmo em 2074…

Interveio Francisco, referindo pausadamente:

– Temos neste Arquivo uma enorme coleção de livros proibidos, notando-se ainda o lápis azul da Direção dos Serviços da Censura. Temos outros tantos livros queimados, igualmente pela Censura.

Para o auxiliar, Manuel pressionou o botão amarelo de um painel que se encontrava na parede para abrir gavetas virtuais com imagens de livros digitalizados, que surgiam à altura dos olhos de todos os presentes. Não conseguiriam tocá-los, pois não existiam como verdadeiros.

– Livros proibidos? Que coisa horrível… Eu adoro ler, mesmo em papel, cada vez mais uma raridade… Onde estão os documentos originais? – questionou uma senhora que aparentava ser a avó do menino que iniciara a conversa.

Francisco acrescentou, surpreendido:

– Nunca pensei que alguém viesse visitar um Arquivo de 2074 e quisesse conhecer o depósito, há centenas e centenas de documentos originais catalogados nos andares inferiores do edifício…

– Sim, mas hoje existem robots que fazem leituras óticas aos documentos e aos livros antigos, digitalizando-os sem necessidade de intervenção humana, formas de preservarmos num sistema integrado toda a informação…

– Sem que as pessoas os manuseiem a toda a hora, estragando-os com os cremes, os perfumes, os suores…

– Verdade… Assim estão guardados como autênticos mistérios, relíquias que protegemos dos ácidos, das baixas ou altas temperaturas. O método de refrigeração ou aquecimento no edifício é do mais moderno que há! – exclamou Manuel, completando-o, com excitação.

– Ao menos temos a certeza que o que lemos aqui é real, escrito por homens ou mulheres daquela época, não havia inteligência artificial que substituísse os humanos… – referiu, criticamente, um senhor.

– Posso explicar-lhe desta forma… tudo o que vemos é fruto da inteligência artificial, tudo o que não vemos, incluindo todos os documentos e livros guardados, é fruto da inteligência humana, memórias históricas que devemos proteger até à exaustão…

– Sintetizaria assim… digamos que o que é irreal tem por base a realidade, que aparece invisível aos nossos olhos. Devemos torná-la mais atrativa ao público, se pretendemos, na verdade, valorizar a História…

Voltou a senhora, inquieta, dando a mão à criança, o que confirmou o parentesco:

– Podemos visitar ou não?

Francisco e Manuel compreenderam, através do olhar, que tomaram as melhores decisões quanto ao seu futuro, arquivistas por paixão, procuravam transmitir às pessoas a mesma vontade e determinação na proteção da História.

– Como assim? Gostava de visitar o depósito? Para além de metros e metros de estantes, com alarmes milimétricos em cada um dos documentos, parece um antiquado lugar…

– Sim, mas não é como antigamente… Não tem cheiro a mofo… também há um controlo tecnológico de ácaros e bichinhos minúsculos que danificavam e comiam as palavras…

– E nós estamos amplamente protegidos com vacinas, vitaminas… Lembro-me de ter visitado um arquivo era eu pequena, achei fascinante…. porém, sai com os olhos a lacrimejar de alergias… – riu-se, recordando-se.

–  A sério, avó? Por favor, leve-nos lá… Tudo aqui é ilusão, cheio de luzes e sons, mas é apenas magia…

– Magia computorizada, diria… Bem, terei de pedir autorização superior, também o faço para a consulta dos originais dos documentos… O depósito é interdito ao público e a inauguração não é o dia ideal para vos levar lá…

– Compreendemos…

O menino mostrou-se desgostoso, não lidava bem com a frustração.

– Vá, meu querido, tem paciência. Acredito que nos levarão ao depósito do Arquivo, talvez tenham de criar grupos menores…

– Pois, evidentemente. Mesmo com a melhor tecnologia do mercado, por razões de segurança é imperativo….

– Guardamos um autêntico tesouro da História de Portugal…

– Tudo bem…. Dito-lhe através do pensamento o número do meu telemóvel para que o seu o guarde – referiu, pressionando um pequeno botão dos óculos que impunha no rosto.

– Muito obrigado. Registado e enviado à rececionista informática para que agende a visita. – disse Francisco, ao ler a informação no relógio de pulso, aceitando-a.

– Obrigado a todos, esperamos que tenham gostado da visita! Para os que também querem visitar o depósito do Arquivo, usem o mesmo procedimento…

– Obrigado! Guardei a canção no meu dispositivo… Terra da fraternidade… O povo é quem mais ordena… Nunca mais se perderá da minha memória! – cantarolou o mordaz senhor, com uma disposição diferente da anterior.

– E eu fotografias das meninas de verde…. Consigo colocar-lhes uma animação em 3D diferente. Cheiram e está de chuva! – exclamou a senhora, apontando para as figuras que saiam do ecrã, usando guarda-chuvas, igualmente verdes, acrescentando: – Com a tua idade, a chuva não tinha cheiro… sabias? A ciência evoluiu de uma maneira…

– Não sabia, avó… Se ao menos pudéssemos controlar o tempo…

– É verdade…. Há anos que anda tão incerta a meteorologia…. Acredito que já faltou mais…. Faria uma grande diferença nos países mais pobres do planeta Terra… Os cientistas estão perto da descoberta, mas quê… andaram entretidos nas viagens ao espaço…

– Adeus, até a uma próxima!

Sorriram, retribuindo e acenando aos anfitriões:

– Adeus, Francisco! Adeus, Manuel!

Beatriz Meireles, 25 de abril de 2024

Ao Francisco e ao Manuel,

nos cinquenta anos do 25 de abril de 1974.