Paulo nasceu com dois olhos castanhos-cegos, um futuro irrealizável na ausência das imagens do passado e do presente, porém afortunados por não verem algumas desgraças, a pobreza, a injustiça, a decadência de quem está para morrer. Os pais de Paulo não desejaram que assim nascesse, mas nasceu, tendo que o proteger necessariamente ainda mais do mundo que nos atraiçoa no dia-a-dia, levando-o a fechar-se num quarto escuro como um blister por abrir de um remédio paliativo, sem contatos com potenciais preconceitos desumanos.

Paulo andou na escola de mochila às costas, arrastado pela mão da mãe, que não o vestiu da conveniente autonomia, para que os perigos não o assaltassem de forma desprevenida e colocassem em causa os sentidos sem deficiência que ainda mantinha no corpo.

Paulo tornou-se um homem de uma metamorfose incompleta, pouco livre de afetos, de inseguranças e de medos, intolerante ao desconhecido quase absoluto. Havia, no entanto, que iniciar um plano para a vida que implicasse novas experiências, atitudes e iniciativas. Por sugestão da dedicada professora rumou então à Biblioteca da edilidade. As dificuldades de Paulo notaram-se por parte dos funcionários que o acolheram, bem-intencionados de valores que permitem as diferenças, mas não acostumados a elas. Esperavam, de forma consciente, que a transformação de todos começasse a acontecer no meio das palavras que o novo elemento não lia nos livros, experimentados então os dedos na escrita no relevo dos papéis, proliferando páginas milagrosas em braille para outros mais iguais a Paulo consultarem, aprendendo tantos temas diversos. Também a Diretora da Biblioteca adquiriu outros conhecimentos sobre os materiais informáticos e a qualidade das folhas a utilizar pelo elemento invisual da equipa e estabelecia, surpreendida, contatos por mensagens de telemóvel com respostas de ortografia e gramáticas corretas. Numa tarde de trabalho, surgiram do negro ecrã os educados caracteres luminosos, acompanhando um ligeiro aviso sonoro:

Senhora Diretora, olá! Acha bem que eu participe nas férias inclusivas? Muito obrigado.

A experiente mulher apercebera-se de que o tímido rapaz preferia diálogos à distância, uma vez que, na verdade, a via presencial não alterava em nada a sua cegueira, tornando-a até mais notória. Escreveu:

Claro, Paulo. Já me falaram. Será uma oportunidade única! As tarefas continuarão assim que regressar.

Muito obrigado. Estou com receio… não fui de férias muitas vezes.

Não esteja. Tudo correrá pelo melhor…. Estará em boa companhia! Porque não foi de férias muitas vezes?

Espero bem que sim, se a Senhora Diretora o diz.

Omitiu que a mãe o guardava nos momentos de lazer pelas mesmas razões que o fazia o resto do ano, para além da segurança, um certo comodismo e impaciência, pois tudo se tornava mais lento na presença de Paulo e a vida dela (e a da maioria das pessoas) acelerava-se muitíssimo. De resto, os pais subsistiam com alguns condicionalismos para colocar na mesa alimentos suficientes para toda a família e para pagar as contas, desconsiderando as viagens com os olhos bem abertos à cultura e ao património, não os transmitindo ao filho já de si privado de os contemplar de forma objetiva.

Digo, pois! As nossas colegas são maravilhosas…. Vá tranquilo! Quando regressar, quero saber todos os pormenores.

– Assim farei!

– Fique bem! Beijinhos.

Muito obrigado. Beijinhos.

Na presença da mãe, Paulo regressou à Biblioteca Municipal no dia seguinte, onde encontrou à sua espera um autocarro de transporte de passageiros. Levaram-no até à porta da frente, subindo depois devagar os degraus, colando-se ao chão com os pés para não cair, amparado pelo motorista que o cumprimentou alegremente:

Bom dia! És o Paulo? Falaram-me muito de ti.

Paulo sorriu sem responder, a sua presença não podia, como habitualmente, ter algum significado para o outro, procurando sentar-se de forma silenciosa numa das cadeiras da frente para facilitar a saída, tocando com os dedos no encosto e adivinhando o sítio correto.

Ouviu alguém sussurrar-lhe com entusiasmo:

– Queres ser meu amigo?

Não reagiu, não tendo a certeza de que um rapaz quisesse ser seu amigo, devia, por certo, ser um simples rapaz, a voz não correspondia ao que atribuía a um professor ou a um senhor.

Insistiu o desconhecido, dando-lhe um abraço que não contava, porém apreciara:

– Queres ser meu amigo?

Eu? – questionou, ainda em dúvida.

Libertou umas gargalhadas de uma pureza encantadora e desconcertante, acrescentando: – O meu pai conhece-te. Vou à Biblioteca com ele e vejo-te muitas vezes. Trabalha nas finanças.

– Não sabia. Nunca conversei convosco, pois não?

– Não, não…. Queres ser meu amigo?

– Não tenho muitos amigos… – informou.

Queres ser meu amigo?

– És insistente.

– O que é ser insistente?

– Alguém que não desiste… referiu, completando humildemente: – Segundo sei.

Desvalorizou a resposta por não a compreender, tornando à questão obsessiva que abandonara por poucos instantes:

– Queres ser meu amigo?

– Sim. Está bem. Mas eu nem sei como és! – exclamou, com convicção.

És meu amigo!

O diálogo interrompeu-se com o regozijo dos presentes, de braços no ar, bem animados, quase tocando o teto do autocarro, deixado, entretanto, num lugar surpreendente, que os convidava a cumprimentar a brisa que já animava as plantas autóctones para o convívio. As gigantescas rochas causavam, num primeiro momento, sombras negras na visão de todos os veraneantes, menos na do Paulo, onde tudo era sensação de escuridão. Todavia, o sol que o aquecia, que desconhecia a forma e a cor, desaparecia por instantes, causando-lhe um ligeiro arrefecimento do rubor que a pele apresentava na face. Num vislumbre seguinte, qualquer humano, de maior ou menor conhecimento ou entendimento, encantava-se com a escalada até ao céu e às nuvens de purezas inesquecíveis, habitando de forma temporária em deuses sobrenaturais e demónios infernais. Tocados por mais estímulos, caminhavam ficticiamente na água do Sousa, engolidos pelos arranha-céus geológicos do fundo do vale. A monitora quis que Paulo tocasse nas reentrâncias das pegadas gravadas na pedra, solidificadas como cera de uma vela fria, explicando:

Paulo, colocaste os dedos nas marmitas de gigante, os buracos causados na pedra pela erosão do rio.

Há pouco ouvi-te falares num cavalo que aqui caiu e agora falas de marmitas de gigante?

A monitora surpreendeu-se com o interesse demonstrado pela audição apurada e explicou cuidadosamente:

– Estás muito atento! A referência ao cavalo advém da Lenda da Nossa Senhora do Salto. As pessoas não sabiam explicar muito bem as marcas arredondadas e este lugar…

– E que Lenda é essa?

– Havia um cavaleiro que perseguia uma lebre, que não era senão o demónio que se disfarçara para o atrair para o precipício. O cavalo deu um salto até aqui, nenhum dos dois morreu… O cavaleiro cumpriu então uma promessa a Nossa Senhora, para contentamento da amada muito devota, mandando erguer a capela que daqui a nada visitaremos…

– Que história!

– Fico muito contente que tenhas gostado.

– Está aqui o meu amigo! – exclamou o jovem do autocarro.

Paulo atendeu no nome que a monitora chamou:

– Olá, Pedro. Gostaste da história que contei ao teu amigo Paulo?

– Não…. Queres ser minha amiga? – questionou, tocando-a nas mãos.

– Claro. Nem se pergunta! Aqui somos todos amigos uns dos outros… – comentou, alegremente.

– Esperem, esperem… – referiu Paulo, fechando os olhos.

– Então, Paulo?

O som da água nas pedras é muito lindo!

A monitora sorriu e acrescentou:

– Nunca ouviste antes?

– Não me lembro muito bem, julgo que não. Costumo ficar por casa…

– Então estás no sítio certo para aprenderes! Tantas memórias que poderás levar contigo…. Tantos seres vivos especiais a rodearem-nos…

– Sim!?

– O falcão peregrino, a lontra, a rã-ibérica, o lagarto-de-água, a salamandra-lusitânica… Que é a imagem escolhida para o Parque das Serras!

– Quem está aqui agora?

– Como assim, quem está aqui agora?

– Qual das aves voa? – questionou, apontando com o indicador:

– São as andorinhas-das-rochas, Paulo… Nem reparei.

– Como é que elas são? Não as conheço…

– São muito bonitas, pequeninas…. Fazem os ninhos nas rochas e não migram para lá da Europa.

– Interessante! Aprendo muitas coisas novas contigo.

Ainda bem, Paulo. Eu estou aqui para isso mesmo… Para que entendam e gostem do nosso Parque. Mas, sabes, ninguém é dono da verdade e até eu aprendo muitas coisas contigo.

– Não aprendes nada, é impossível!

– Aprendo sim, por exemplo, a escutar com mais atenção…

Pedro interrompeu o diálogo, dizendo perentoriamente:

– Amigos, estão a chamar-vos para o piquenique.

– A sério? Como o tempo passa… – referiu a monitora, colocando um braço em Paulo para facilitar a marcha.

Os visitantes sentavam-se em toalhas quadradas, bebendo e comendo tranquilamente os produtos endógenos transformados em iguarias que os deliciavam, fazendo-se silêncio num instante de um relâmpago. O milho que a terra criou, transformada e confecionada por ordem humana em broa, engalanada por uma capa ligeiramente queimada pelo forno que protegia o miolo interior. Como companhia adoçante, barravam o mel multifloral que as abelhas fabricaram a partir da polonização na colmeia que mais tarde o apicultor colocaria na casa-pátio para uma demonstração. Cortavam com as mãos a estaladiça regueifa, onde embalavam compota de abóbora de um conhecido concurso de hortícolas gigantes, antes de a mastigarem ávidos. Para o manjar, apareceram, para além das abelhas a reclamarem o mérito da refeição, as borboletas, que se fizeram de convidadas saltitantes, trazendo de forma invisível, também consigo, as urzes arroxeadas do vale e o medronheiro. Paulo degustava a comida com muito apetite, aperfeiçoando o paladar e o cheiro. A monitora contemplava-o com um certo deleite.

– Gostas, amigo? – quis saber Pedro.

– Muito. Nunca provei um mel tão delicioso.

– É realmente. – disse a monitora, completando a ideia: – O apicultor sabe realmente o que faz…

– Sem esquecermos as abelhas… – mencionou Paulo, que aos poucos perdia alguma da timidez, interagindo.

Riram-se em uníssono.

– Gostas de cozinhar?

– Gosto bastante. Mas a minha mãe tem medo que eu me queime. – reclamou tristemente.

– Certo, tens de fazer um esforço para lhe mostrares que consegues…. O fogo é quente e tu vês, desculpa, sentes, de alguma maneira o fogo.

– Claro que sim. – Concordou, não estando convicto que a convencesse.

– É que há no nosso parque plantas aromáticas que dão mais sabor e perfume aos cozinhados: tomilhais, rosmaninho, bosquete de loureiro…

– Nunca ouvi falar de semelhante assunto.

– Ainda bem que continuas a aprender comigo nestas férias. Estás a gostar?

A adorar… – referiu com certeza.

Irrompeu, irrequieto, Pedro, trazendo consigo o autismo e o rapaz de cor do grupo, com algum tipo de atraso cognitivo.

– Olha outro amigo, Paulo! É castanho-escuro.

– Castanho-escuro? Eu não conheço as cores! Imagina que não vês nada, o sol, a lua, as flores…

– És amigo do meu amigo José, Paulo? – interrogou, esperançoso.

– Olá, achas que vamos ver algum boi por aqui?

– Um boi? Acho mesmo que não. A monitora não falou em bois… – informou Paulo. Sentia-se revigorado, pela primeira vez na vida o mais conhecedor dos presentes.

– A sério? Eu vim para ver bois. Gosto de bois.

– E ouro gostas? – interveio a monitora.

– Ouro? Do rei?

– Dos romanos… Que por aqui faziam exploração de ouro. Se tivermos tempo, visitaremos a mina de Castromil… e também a Torre do Castelo de Aguiar de Sousa!

– Castelo? Do rei?

– Sim, é mais ou menos isso…. Servia para a defesa do território…

Pedro e José desconcentraram-se, não apreendendo a informação, mantendo Paulo a atenção na explicação.

– Obrigado. Estou ansioso por conhecermos mais…

– Claro que sim! Deixa-me tirar mais um biscoitinho, que estão deliciosos. Os teus colegas também estão a terminar.

As férias completaram-se com o entusiasmo dos participantes, histórias de tolerância e de diferença que se escreveram com distinção, outras perspetivas de vida para quem a não vê compreendida, quando até, afinal, nenhum de nós a vê, tentando escrever em vão tantas primeiras linhas, pássaros que cantam em asfixia por um corpo. Paulo achava-se mudado, os dois olhos castanho-cegos com uma rigidez mais ténue, penas de uma beleza esvoaçante.

Da tela negra da Diretora da Biblioteca, tornaram a surgir pintados os contactáveis caracteres de Paulo:

– Bom dia, Senhora Diretora.

– Bom dia, Paulo. Como foram as férias?

– As férias foram extraordinárias. Fiz dois amigos, o Pedro e o José. Aprendi tantas coisas novas! A monitora deixou-me tocar em tudo, a experimentar tudo! Nem imagina…

– Acredito, Paulo. O Parque das Serras do Porto é realmente encantador. Abraçaste alguma árvore?

– Não sabia que podíamos abraçar árvores… Que pena!

– Terás outras oportunidades… – referiu, sem acreditar no que digitava.

– Pois, terei. O pai do Pedro, que trabalha nas finanças, diz que nos leva ao Parque de novo. Prometo-lhe que abraçarei uma árvore.

– Como assim? Já pediste aos teus pais? – questionou, querendo saber se recolhera a devida autorização.

– Sim. Eu tenho falado com o Pedro diariamente. Como lhe disse, é meu amigo e o José também. Iremos os três com o pai do Pedro, que trabalha nas finanças.

– Então irá buscar-te a casa, sim?

– Foi o que ficou combinado…. Iremos na sexta-feira de manhã daqui a quinze dias, autoriza?

Autorizo, não te preocupes. Compensas o trabalho no teu regresso. Beijinhos.

– Beijinhos.

Os três aventureiros seguiam no Parque das Serras, conduzidos num jipe pelo pai de Pedro, rodeados de expetativa e de receio, pois, a qualquer momento, podiam ser engolidos pelas cortas que deixaram os romanos dos antigos trabalhos mineiros da exploração de ouro. No horizonte veriam o mar, dizia-lhes, da terra das Serras de Santa Justa e das Pias. Sugeriu que vestissem e calçassem confortavelmente para visitarem depois, quando saíssem do meio de transporte, um moinho de xisto e o Museu Mineiro de São Pedro da Cova.

– Chegamos! – exclamou o motorista dos rapazes.

– Chegamos onde? – perguntou, atordoado pela viagem, Paulo. Confundira-se igualmente com tantos planos.

– Subimos à cumeada da serra. Respira tranquilo a natureza. Não tenhas medo…

– Que altos! E o mar, papá?

– O mar está ali ao fundo… – informou, apontando para o azul imenso de felicidade.

José inspirou e expirou ruidosamente, seguindo o conselho do adulto.

– Zé, deixa-me ouvir o que nos rodeia! As flores da serra como cheiram bem! Imagino também o mar. que veem. – referiu, tão orgulhoso.

– Calma, Paulo. Onde vais? – questionou o pai de Pedro, apercebendo-se de que pretendia descobrir algo.

– Procuro uma árvore.

– Sim!? Andem meninos…. Vamos levar o Paulo até a uma árvore…

– Uma árvore!? – duvidou Pedro.

– E um boi? Podes levar-me a ver um boi? – inquietou-se José.

– Silêncio. Aqui está! – exclamou, libertando o cego de novo à vida na natureza.

Paulo tocou nas imensas fissuras do órgão vegetal, frágil e duradouro, abraçando-o de seguida. Provava as lágrimas de alegria, que continha na maioria das ocasiões, por não se revelarem especiais como o momento em que abraçou uma árvore.

– Então, Paulo?

– Tenho três amigos, o Pedro, o José e a Árvore.

 

Metamorfoses um texto de Beatriz Meireles.