Na rua das Margaridas, chamo casa a dois espaços onde ainda vivem três pessoas da minha família. Ao cimo da rua, a avó Margarida Marília permanece à janela de madeira branca e de cortinados rendilhados, para ver-me comprar o pão e os croissants na padaria, os ovos kinder e os gelados no café Cigarrilha ou o chocolate em pó para o leite na mercearia de toldo listado. Quando regresso, com as moedas trocadas na mão suada, levanto, com a outra mão, a aldraba de ferro que, ao bater na porta, ecoa por toda a rua. Bem sei que era desnecessário este ato, a avó vigiou-me durante a ausência consentida e apercebeu-se naturalmente do regresso. No entanto, hoje trago um delicioso sorriso perante um já vai, repetido, tão simples e familiar. Ouço-a, depois, descer apressada as escadas, de corrimão torneado, igualmente de madeira branca, fazendo algum barulho com os sapatos pretos que tapavam os dedos e os pés tão pequenos. Invadida, sinto a paz do Santuário, mais alto, sentada no banco de ferro verde do terraço de cimento e de floreiras repletas de zínias coloridas, joaninhas, caracóis e borboletas, saboreando então o lanche devagarinho para, no final, mais convicta, amassar o saco de papel castanho fino. De longe, talvez do além, chega até mim uma suave brisa perfumada, invisivelmente forte.

Nunca lhe vi dizer com os olhos azuis acinzentados mal de alguém, nem ouvi, trocando em palavras sentimentos menos bons. Nunca pressenti que falasse muito de si própria, dos filhos e dos netos, das tias Margarida Maria e Isabel Margarida, que a acolheram quando perdeu, em criança, o pai na guerra colonial e a mãe de uma doença sentenciada de morte. As sempre presentes Margaridas, por vezes, demasiado exigentes ou até mesmo exageradamente presentes.

Por falar nas tias Margaridas, duas personagens de um livro cómico e interessante. A mais elegante, uma magrinha e baixa senhora, de saias travadas, blusas de puras sedas e pérolas reluzentes. A menos elegante, rasgava os forros das saias com as pernas gordas, impunha blusas de padrões e desenhos despropositados em tons terra quentes. Era desarrumada e conversadora, descontrolada de risos e de atitudes pouco razoáveis para a idade. Em muitas alturas, ouvi os reparos exasperados e contrariados da irmã mais séria, envergonhada, diálogos maravilhosamente únicos. – Isabel Margarida, limpaste o pó à sala de visitas? O canapé tem as almofadas de cetim tortas. Isabel Margarida, viste como deixaste as natas coladas de cevada na xícara de porcelana Vista Alegre?

Perdi a conta aos metros que calcorreei, com os meus sapatos de criança gastos nas solas de borracha, de tanto subir e descer a Rua das Três Margaridas, da casa da avó para a casa das tias solteironas, mais abaixo, junto a uma tinturaria, a uma loja da Singer e ao histórico largo, onde risquei, igualmente, as pontas do calçado, das inúmeras brincadeiras de joelhos. Numa dessas vezes, ao esconde-esconde, rasguei um joelho no para-choques metalizado do antigo carocha Volkswagen, marca gravada para sempre.

Fui, a correr, até à cozinha arrumada, com as chávenas, as malgas e os pratos bem postos nas prateleiras de traves verticais boleadas, com o sangue a escorrer para o ladrilho do chão. Gritei, sofrida, socorrendo-me a tia Margarida Maria, que chamou, impressionada, a irmã. – Isabel Margarida, vai chamar muito rápido a Margarida Marília. Ela que traga a mala médica! A avó, para além de ser mulher, dona de casa, mãe e cozinheira, desempenhava na perfeição o papel de costureira, ajeitando as roupas dos filhos e dos netos, bem como de enfermeira, ministrando injeções como ninguém e unindo também a pele com pontinhos de dor. – Vá, aí, filha. – disse-me, mandando-me sentar na namoradeira em pedra da janela da cozinha. Nas mãos mágicas da avó estava a salvo, protegida de todos os males do mundo, mesmo do cão perigoso de caça, o Sassa, nome inspirado na telenovela brasileira Sassaricando, preso, contrária e precisamente para não saraquitar, numa jaula ao fundo do jardim sombrio de mistérios.

Muitas vezes, na companhia dos meus irmãos, atirávamos caroços de corações gordos, pintados os lábios de vermelho rubro, à cerejeira que víamos dessa janela da cozinha, julgando, erradamente, que o nascimento resultara de um anterior e semelhante comportamento. – Talvez cresçam mais árvores iguais e possamos comer as cerejas todas que quisermos! – exclamávamos, com entusiasmo. Penso que o jardim não combinava, principalmente com a Maria das Margaridas, demasiado fresco, fechado pelas copas das árvores, com líquenes e tufos de musgo. Não me recordo de outras cores, para além do verde, nem flores, que estranheza faltarem as rosas, as estomas, os gladíolos, as peónias, as tulipas, que comprava na florista, quase de frente à porta, para assear os altares de todas as igrejas da cidade e as jarras nos batizados, nas comunhões e nos casamentos de família.

Nunca lhe vi dizer com os olhos acinzentados mal de alguém, nem ouvi palavras pouco compreensivas quando íamos para dormir na casa da avó e acabávamos na das tias. A minha irmã instalava-se no quarto de águas furtadas, acumuladas as roupas da semana aos pés da cama, onde se sentava com a Isabel, que lhe oferecia as Serenatas de Amor mais doces, escondidas nos gavetões da cómoda. Fazia-o, de forma propositada, não fora ouvir os murmúrios da Maria: – Não dês isso à menina! Parece impossível…. Olha a diabetes! A dada altura morreu mesmo dos excessos e dos prazeres da mesa. Toda a gente compreendeu, pois, durante toda a vida, pensávamos num fim assim para ela. Todavia, nem todos aceitaram a resultante decadência neurológica de Margarida Maria, após tamanha perda traumatizante, uma espécie de aborto de um feto carregado durante toda a vida. Eu, que escolhia sempre o quarto dela por ser a irmã mais distinta, habituei-me depois à ideia de a ver como uma outra mulher, de pijama, robe e pantufas, divorciada a mente do corpo, tão profunda, mas, ao mesmo tempo, perdida. Nunca mais voltei a tocar na caixa de música com a prima bailarina, nem a experimentar os colares e os brincos do toucador, com espelho côncavo, de madeira de nogueira, no momento presente cor-de-rosa pastel, colocado num quarto de menina. Como as coisas transfiguram-se por completo se usadas por outra pessoa! Vislumbrei-a muitas vezes para perceber se era, de verdade, a mesma.  Num sítio qualquer do cérebro, misturo o passado e o futuro, folheio o livro da memória, contemplando a petiz a experimentar brincos, colares e sapatos de tacão alto da mãe, quem sabe sabrinas de bailarina como as que usei.

A mãe… A minha afirmou, em vários momentos, que eu sou uma pessoa insensível, por não gostar de cumprimentos ou despedidas. Não, mãe, não gosto! Apercebo-me neste instante da razão: como podemos considerar que chegamos ou partimos de dois espaços que eram continuamente um, apenas uma só noção de casa? Quando precisava da assistência da avó Margarida Marília, aparecia do nada, atrás da sombra da janela da cozinha das tias; quando precisava de uma grinalda de miosótis a combinar com o tutu de tule para a festa da Lamparina, aparecia do nada, da tia Margarida Maria, na sala de estar da avó; quando precisava de levar chocolates para a Família que nunca foi a minha, apareciam do nada, num saquinho da Isabel Margarida dentro da mochila da escola. As chaves que abriam as portas de acesso à intimidade dos dois lugares, separados pela distância da própria rua, nunca existiram. Quão grata vos estou, Margaridas, pelo amor descomplicado, excluído de barreiras artificiais e sociais!

Mas, não, querida mãe, não sou uma pessoa insensível. As pessoas insensíveis não reparam nas fotografias das mesinhas com os naperons redondos, apenas as imperfeitas, tombadas dos solitários de cristal como flores que amadureceram, amareleceram e perderam a juventude. Perguntava-te, não era, como a imagem a preto e branco da avó, criança, correspondia à minha? Ela que já não era assim e como também eu já não sou hoje, que procuro outras respostas, bem no interior das molduras. A beleza vai-se, a pouco e pouco, nos sinais a mais, nas fissuras profundas do rosto, nos ossos marcados das mãos, nos tornozelos inchados, nas unhas encravadas e nos pés ásperos a precisarem a cada quinze dias de calista. Avó, nem me importo tanto de envelhecer ao ter-te visto passar por tudo isto, talvez os mais intelectuais da literatura valorizem finalmente o que direi ou escreverei, sem duvidarem da intenção ou autoria. Sabes, no fundo, necessito somente de manter-me acordada, viva, como se nadasse à tona num mar revolto em ondas de possibilidades infinitas ou andasse a abrir, em permanência e enérgica, as portas e as janelas das duas casas, perpassando o corredor da rua das três Margaridas.

Anjinho da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia…. Avó, obrigavas-me a dizer a uma singela cruz de madeira, antes de dormir, porquê? Como posso guardar a minha alma se foge e não se mantém a mesma? Uma alma que sofre desilusões diárias e assiste a violações morais e a privações de toda a espécie! Uma alma que nem sempre pensa bem e vive condicionada e aprisionada por razões de ordem social e de sobrevivência humana! Bruta também sou, alma depenada, que não importa guardar de dia, muito menos de noite, quando os demónios, as pequenas vinganças e os ódios vêm até nós através dos sonhos. Os meus olhos não permanecem verdes puros, uso máscaras que lhes alteram a cor ou tapam-nos, propositadamente. Os meus olhos, que assistiam, da varanda da tua casa, à procissão e à carroça transportada por bois, onde do chão ao céu vinham meninas vestidas de branco, não carregam todos os dias as palavras e o Corpo de Deus.

A dada altura, quando não existia o corpo da tia Margarida Maria, desapareceste da rua e nós igual, claro. De quando em vez, ouvia a mãe contar-te:  – Sabe quem perguntou por si? A Josefina da casa em frente. Ao que respondias: – Sim? Como está ela? A mãe referia depois: – Está ótima, durará até aos cem anos. Apercebia-me da expressão da Margarida Marília, com luz e escuridão. Alegria por ser ainda lembrada, tristeza por saber que cairia no esquecimento, quando todos os que conhecia, morressem com ela. Bom, tal como tu, ao aproximar-me da chama, queimo-me de descontentamento, indiferença, regressando rapidamente à treva, até que, acredita, torno a iluminar-me, sentindo os teus beijos repenicados, pela aurora, na nuca e nos cabelos. Trago-os quase sempre arranjados, com brincos a emoldurar o rosto, sei que gostavas. Nunca trago calças de ganga rasgadas e coçadas, sei bem que não gostavas.

Num inglorioso dia, chegavas do cabeleireiro com a cabeça quente do giratório chapéu, rebentou-te uma veia mais frágil. Desde então, desorganizaram-se as ideias, as lembranças e vieram esquecimentos, mesmo os nomes das pessoas que mais reconhecias e amavas. Para evitarmos o esgotamento da mãe, levamos-te para a penúltima e Santa casa. Desculpa, avó Margarida, mas aquela mulher aos gritos não eras mais tu. Não adivinhávamos, contudo, não poder abraçar a decadência final, sujeitos a interdições para proteção de cada um, mas principalmente da tua e a dos outros seres mais velhos. Desculpa, avó Margarida, quando nos deixaram entrar, apenas para repousares na última casa, não muito longe da antiga, não toquei nos cabelos brancos, não demonstrei quaisquer afetos de despedida e fixei simplesmente o olhar nos teus sapatos. Pensei por que os calçariam se não mais andarias. Queria tanto ver os pés pequenos! É certo que desapareceram os pés bonitos, mas precisava de os ter visto, desimpedidos de sapatos, para perseverar, como uma criança livre e forte, que ainda sobe e desce a rua das três Margaridas atrás de ti.

Voltámos, do nada, à rua. Eu e os meus irmãos. Dos dois espaços abandonados que chamo casa, não podemos chamar mais por nenhuma das Margaridas. Mas elas estão por lá, almas depuradas, a espreitar às janelas.

A rua das três Margaridas  um texto de Beatriz Meireles.